sábado, 2 de junho de 2012
Democracia, o novo fantasma dos mercados
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Reproduzo a seguir um bom texto para reflexão do filosofo e psicanalista Slavoj Žižek sobre a crise e a situação da Grécia:
Por Slavoj Žižek
Imagine uma cena de um filme distópico que mostre
nossa sociedade num futuro próximo. Guardas uniformizados patrulham ruas
semivazias dos centros das cidades, à caça de imigrantes, criminosos e
desocupados. Os que encontram, os guardas espancam.
O que
parece fantasia de Hollywood já é realidade hoje, na Grécia. Durante a noite,
vigilantes uniformizados com as camisas negras do partido neofascista Golden
Dawn [Aurora Dourada], de negadores do Holocausto –, que receberam 7% dos votos
no segundo turno das eleições gregas e que contam com o apoio, como ouve-se
pela cidade, de 50% da polícia de Atenas – patrulham as ruas, espancando todos
os imigrantes que cruzem seu caminho: afegãos, paquistaneses, argelinos. É como
a Europa defende-se hoje, na primavera de 2012.
O
problema de defender a civilização europeia contra a ameaça dos imigrantes é
que a ferocidade com que os defensores europeus defendem-se é ameaça muito
maior a qualquer “civilização”, que qualquer tipo de invasão de muçulmanos, e
ainda que todos os muçulmanos decidissem mudar-se para a Europa. Com defensores
como esses, a Europa não precisa de inimigos. Há cem anos, G.K. Chesterton deu
forma articulada ao impasse em que se metem os que criticam a religião: “Homens
que se põem a combater igrejas em nome da liberdade e da humanidade espantam de
si mesmos a liberdade e a humanidade em nome do combate à igreja (…). Os
secularistas não provocaram o naufrágio das coisas divinas; só fizeram
naufragar coisas seculares… se isso lhes serve de consolo.” [1]
Tantos guerreiros
liberais andam tão furiosamente decididos a combater o fundamentalismo
anti-democrático, que acabam esquecendo qualquer liberdade e qualquer
democracia, tudo em nome de combater o terror. Se os “terroristas” estão
dispostos a destruir nosso mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros
antiterror prontificam-se a devastar qualquer democracia, por ódio ao próximo
muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que, para defendê-la,
dispõem-se a legalizar a tortura… É a inversão do processo pelo qual os
fanáticos defensores da religião começaram por atacar a cultura secular
contemporânea e acabaram por sacrificar até as próprias credenciais religiosas,
na ânsia de erradicar todos os aspectos que odeiam no secularismo.
Mas os
defensores que insistem em defender a Grécia contra imigrantes não são o
principal perigo: não passam de subproduto do perigo muito maior: as políticas
de austeridade que causaram a desgraça da Grécia. As próximas eleições na
Grécia estão marcadas para dia 17 de junho. O establishment europeu alerta que
são eleições cruciais: não estaria em jogo só o destino da Grécia, mas o
destino de toda a Europa. Um resultado – o correto, segundo eles – levará ao
processo doloroso mas necessário de recuperação. A alternativa – no caso de
vitória do Partido Syriza, de “extrema esquerda” – seria votar pelo caos, pelo
fim do mundo (europeu) como o conhecemos.
Os
profetas do apocalipse estão corretos, mas não como supõem ou pretendem.
Críticos dos arranjos democráticos hoje vigentes reclamam que as eleições não
oferecem opção real: votamos para escolher apenas entre uma centro-direita e
uma centro-esquerda cujos programas são quase absolutamente idênticos. Mas dia
17 de junho, afinal, haverá escolha significativa: de um lado o establishment (Nova
Democracia e Pasok); do outro lado, a Coalizão Syriza. E, como acontece quase
sempre em que há escolhas reais no mercado eleitoral, o establishment está em
pânico: caos, pobreza e violência eclodirão imediatamente, dizem, se os
eleitores escolherem “errado”. A mera possibilidade de vitória da Coalizão
Syriza, como se ouve, já dispara convulsões de medo nos mercados. A prosopopéia
ideológica é rampante: os mercados falam como se fossem gente, manifestam
“preocupação” pelo que acontecerá se as eleições não produzirem governo com
mandato para manter o programa de austeridade e reformas estruturais de UE-FMI.
Os cidadãos gregos não têm tempo para pensar nas preocupações “dos mercados”:
mal conseguem ter tempo para preocupar-se com a sobrevivência diária, numa vida
que já alcança graus de miséria que não se viam na Europa há décadas.
Grécia
não é exceção. Lá se testa um novo modelo socioeconômico:
uma tecnocracia despolitizada, na qual banqueiros
e outros especialistas ganham carta branca para demolir a democracia
Todas essas são previsões enunciadas para se autocumprirem, causar mais pânico
e, assim, forçar as coisas a andarem na direção “prevista”. Se a Coalizão
Syriza vencer, o establishment europeu ficará à espera de que nós aprendamos
com nossos erros o que acontece quando alguém tenta interromper, por via
democrática, o ciclo vicioso de cumplicidade bandida, entre os tecnocratas de
Bruxelas e a demagogia suicida do populismo anti-imigrantes.
Foi
exatamente o que disse Alexis Tsipras, candidato da Coalizão Syriza, em
entrevista recente: que sua prioridade absoluta, no caso de sua coalizão vencer
as eleições, será conter o pânico: “Os gregos derrotarão o medo. Não
sucumbirão. Não se deixarão chantagear.”
A tarefa
da Coalizão Syriza é quase impossível. A coalizão não traz a voz da “loucura”
da extrema esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia
dos mercados. No movimento de prontidão para assumir o governo da Grécia, já
derrotaram o medo de governar, tão característico entre a esquerda; já
mostraram que não temem fazer a faxina do quadro confuso que herdarão. Terão de
mostrar-se capazes de montar e cumprir uma formidável combinação de princípios
e pragmatismo; de compromisso democrático e presteza para intervir com firmeza
onde seja preciso. Para que tenham uma mínima chance de sucesso, precisarão de
toda a solidariedade dos povos europeus; não só de respeito e tratamento
decente pelos demais países europeus, mas, também, de ideias mais criativas –
como a de um “turismo solidário” nesse verão, que já propuseram.
Em suas
Notes towards the Definition of Culture, T.S. Eliot [2] observou que há
momentos em que a única escolha é entre a heresia e o não crer – ou seja.,
quando o único meio para manter viva uma religião é promover uma divisão herética.
Essa é, hoje, a posição em que está a Europa. Só uma nova “heresia” –
representada hoje pela Coalizão Syriza – pode salvar o que valha a pena do
legado europeu: a democracia, a confiança nas pessoas, a solidariedade
igualitária etc. A Europa que haverá para nós, se a Coalizão Syriza for
descartada, é uma “Europa com valores asiáticos” – os quais, é claro, nada têm
a ver com a Ásia, e tem tudo a ver com a tendência do capitalismo
contemporâneo, para suspender a democracia.
Eis o
paradoxo que mantém o “voto livre” nas sociedades democráticas: cada um é livre
para escolher, desde que faça a escolha certa. Por isso, quando se faz a
escolha errada (como quando a Irlanda rejeitou a Constituição da União
Europeia), a escolha é tratada como erro; e o establishment imediatamente exige
que se repita o processo “democrático”, para que o erro seja reparado. Quando
George Papandreou, então primeiro-ministro grego, propôs um referendo sobre a
proposta de resgate que a eurozona apresentara no final do ano passado, até
este foi descartado como falsa escolha.
Há duas
principais narrativas na mídia, sobre a crise grega: a narrativa alemã-europeia
(os gregos são irresponsáveis, preguiçosos, gastadores, não pagam impostos,
etc.; e têm de ser postos sob controle, com aulas de disciplina financeira); e
a narrativa grega (nossa soberania nacional está ameaçada pelo tecnologia
neoliberal imposta por Bruxelas). Quando se tornou impossível ignorar o
suplício do povo grego, emergiu uma terceira narrativa: os gregos estão sendo apresentados
hoje como vítimas de desastre humanitário, carentes de ajuda, como se alguma
guerra ou catástrofe natural tivesse atingido o país. As três são falsas
narrativas, mas a terceira parece ser a mais repugnante. Os gregos não são
vítimas passivas. Os gregos estão em guerra contra o establishment econômico
europeu. Precisam de solidariedade nessa luta, porque a luta dos gregos é a
luta de todos nós.
A Grécia
não é exceção. É mais uma, dentre várias pistas de testes de um novo modelo
socioeconômico de aplicação quase ilimitada: uma tecnocracia despolitizada, na
qual banqueiros e outros especialistas ganham carta branca para demolir a
democracia. Ao salvar a Grécia de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a
Europa.
__________
[1]
CHESTERTON, Gilbert K., Orthodoxy [1908], “VIII: The Romance of Orthodoxy”, em
http://www.leaderu.com/cyber/books/orthodoxy/orthodoxy.html (ing.) [NTs].
[2]
ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Lisboa: Século XXI, 1996.
Fonte
inicial: London Review of Books
Tradução: Vila
Vudu
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- Naldo
- Ex-diretor da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e ex-presidente da União da Juventude Socialista (UJS) de Alagoas. Atual militante e presidente do Comitê Municipal de Maceió do Partido Comunista do Brasil, PCdoB.
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